É véspera de Natal, acordo às sete da manhã para decorar músicas natalinas, terminar de escrever detalhes sobre as crianças e colar mapas no meu livro dourado. Serei o Papai Noel de 10 famílias berlinenses. A única coisa que me vinha à cabeça era: porque eu fui inventar de fazer isso? E claro, vinham várias respostas muito convicentes, mas mesmo assim era difícil manter a calma. Eu já estava há uma semana em tempo quase integral estudando e programando tudo isso. Tive que passar toda a terça-feira de antes do Natal pendurado no telefone falando com os pais, me informando sobre todos os detalhes possíveis, uma lista interminável de perguntas. Tudo teria que ser perfeitamente encenado, não poderia ser facilmente desmascarado.
Às 13h saio de casa, não faz tanto frio, boa parte da neve já derreteu, mesmo assim a pista estava bastante escorregadia, e claro, todo o percusso seria feito de bicicleta. Desço na Turmstrasse, Moabit, parte norte de Berlin, onde vivem muitos turcos, então nem parece tanto dia de natal, as lojas continuam abertas. Faltando 30 minutos para a primeira casa, me dirigindo para lá lentamente, ainda pensando: porque? porque? Como era de se esperar, me perco, havia pegado o sentido contrário, já não estou tão adiantado, tenho que correr. Enfim, acho a primeira casa, onde moravam duas crianças de 3 anos de idade. Ligo pro pai e digo que cheguei, mas preciso de 5 minutos para colocar toda a roupa de papai noel. Preciso me trocar na escada do prédio, com medo que alguma outra criança me veja, me visto rapidamente. O que eu poderia argumentar estando com barba na mão e ainda sem o travesseiro na barriga?
Estou pronto! Me olho no espelho e penso, eu sou completamente louco. Trabalhando de Papai Noel, na Alemanha, onde o Natal é super tradicional e sem ainda falar alemão perfeito. Penso tudo isso em um segundo, então aparece o pai. Me fala alguns detalhes, ajuda a colocar os presentes no saco e diz que estou bem como o bom velhinho. O que me tranquiliza bastante.
Primeiro momento, coração acelerado. Bato forte na porta, escuto as crianças correndo em direção à porta, que é aberta devagar e começa minha atuação. Hohoho! As crianças lindas, gêmeos, um menino e uma menina. Falo o nome delas e pergunto se posso entrar. Vou entrando pesadamente, falando com toda a família. Sento no sofá e digo para cantarmos algo. Toda a família canta, depois as crianças me contam uma pequena história de Natal. Olho no livro dourado, vejo que foram boazinhas no ano, distribuo os presentes, cantamos mais uma música e então parto. Tudo isso rápido, uns 7 minutos. Desço, troco de roupa, olho no mapa onde mora a próxima família. Vamo lá! Então já havia perdido o medo inicial e ia pensando no caminho que bom está vivendo uma experiência como essa e que bom ter aceito o desafio.
As coisas foram correndo bem, as famílias eram simpáticas, algumas me davam até algo pra comer, as crianças super tranqüilas, os locais próximos e fáceis de achar. Até que eu comecei a me afastar um pouco do círculo que eu estava, fui parar num condomínio classe média de prédios altos, algo estranho de se ver na parte ocidental da cidade. Fiquei observando o lugar, uma arquitetura moderna, mas que não agredia, penso já ter visto esse lugar em algum filme que foi rodado em Berlim, mas não consigo me lembrar qual. Com a família desse prédio havia combinado de pegar os presentes com uma vizinha, uma senhora de uns 70 anos que parecia morar sozinha. Quando cheguei lá, ela estava cozinhando algo pro Natal, um cheiro muito forte de comida na casa, lugar abafado, peço água e sento, já estou muito cansado. A senhora não pára de falar, diz conhecer não-sei-quem que é de Portugal e que eu poderia passar na casa de não-sei-quem pra ir conversar um pouco de português. Olho o relógio, estou começando a me atrasar, e atraso nesse dia seria que nem bola de neve, não conseguiria chegar na hora em mais nenhuma casa, as pessoas começariam a me ligar, perguntar por onde anda o Papai Noel, tudo poderia ir água abaixo.
Me visto, vou correndo pro apartamento da família, um andar acima, começa a encenação. Família classe média alta, tradicional, crianças simpáticas, fofinhas. Depois de toda a cerimônia, o pai diz que as crianças têm uma surpresa pra mim. Começam a tocar piano e a cantar uma música de Natal, uma cena incrível. Só que o tempo corria, a música não dava sinais que iria acabar, já estava meia hora atrasado pra próxima família. Finalmente a música acaba, me despeço, saio correndo, estou muito atrasado, já havia escurecido.
A próxima casa ficava perto das primeiras, então volto pro local do início. Dessa vez, prédio antigo, paredes descascadas. Toco no apartamento da vizinha pra pegar os presentes, agora sem conversas, penso. Mas a vizinha era uma mulher, digamos, bem atraente. Dessa vez, eu que acabo puxando conversa. Ficamos só na conversa, troco de roupa e vou pra casa da família. A mulher me adverte, o menino é virado. Entro no apartamento, família pobre, o menino me adorou, ficou me mostrando tudo que tinha, tudo que "eu" já tinha dado a ele, não parava de falar e pular, nunca vi tanta alegria. Me despeço, pego o dinheiro com o pai, um cara enorme com uma tatuagem no rosto que me fala algo como, massa, foi perfeito!
Saio feliz, agora para uma casa onde me esperam três crianças. Preciso pedalar muito rápido, o risco de queda é enorme, estou muito cansado. Chego no prédio, vou me trocar numa garagem escura, assusto os vizinhos que chegam. Calma, calma! Sou apenas o papai noel, digo. Toco a campanhia, mas quem aparecem são as crianças do apartamento vizinho. Insistem pra que eu vá primeiro na casa delas, que elas foram super boazinhas, perguntam pelos presentes. Mas, claro, eu não tinha presentes pra elas, então digo que volto mais tarde.
Finalmente entro na casa, me sento na poltrona como um velho de fato. As crianças vêm tirar foto, cantar, me perguntam mil coisas e me mostram uma foto do ano passado, lá estava "eu". Falam que eu havia falado inglês com elas no ano passado, me perguntam porque eu estou falando alemão. Falo que o papai noel precisa ser poliglota e falo umas coisas em espanhol.
Quando saio do apartamento dou de cara com as crianças do vizinho que estavam lá esperando. Meu presente, papai noel, meu presente! Bateu o desespero ver aquelas sei lá quantas crianças gritando e puxando minha roupa, então tentei fugir, desci as escadas correndo com as crianças me perseguindo, que eram mais rápidas do que eu. Parei e consegui contornar a situação dizendo que eu já voltava, precisava pegar os presentes, só assim me deixaram partir.
No caminho pra próxima casa, me perco. Neve, muita neve nessas ruas já próximas ao Tiergarten. Uma mãe me liga, já tinha dado a hora de eu estar lá e ainda tinha que passar na casa de três famílias, havia mesmo me atrasado bastante. Começa uma discussão por conta disso, claro. Mas a mãe não ajudava em nada, então perguntei se ela ainda queria mesmo que eu passasse lá, porque eu estava perdendo ainda mais tempo com ela ao telefone. Ela desligou na minha cara, ótimo.
Acho o lugar, outro condomínio de prédios altos, dessa vez a arquitetura agride, me lembro de Recife. Família classe média alta, menina mimada, a mãe pede pra eu tirar os sapatos antes de entrar. Tive que fazer isso e assim perdi toda minha moral. A menina nem me deu bola, ganhou uns 15 presentes, nem cantou nada pra mim. Saí de lá correndo.
Vou agora entregar presente pra um menino de uns 2 anos. Na entrada do prédio piso em merda de cachorro, perco um tempo enorme tentando limpar toda aquela sujeira. Quando entro na casa, o menino sai correndo de mim, não pára de chorar nem um segundo. Bom, então foi bem rápido. Só os avós que se divertiram comigo, sentaram até no meu colo pra tirar foto.
Saio pedalando ainda mais rápido, a próxima casa fica longe, lá tinham duas meninas, a mãe era italiana, o pai, alemão. A família mais bonita, minha pior encenação no Natal. Só queria ir pra casa tomar uma garrafa de vinho e dormir. Acho que eu fui descoberto nessa casa, as meninas já não eram tão novas, meu alemão falhou, tentei falar algo em italiano no final e também não deu certo, um desastre. Então me comunico com a mulher que eu havia discutido ao telefone, diz, puta da vida, que eu não devo mais ir lá. Ainda bem, menos uma casa. E lá me aguardavam cerca de 5 crianças. É, estraguei o natal de uma família, mas se eu fosse, ainda podia ter sido pior, devido ao meu estado de moribundo.
Bom, agora só restava uma família, casa de Phattha, uma menina de 5 anos, super inteligente, ficou muito desconfiada, me perguntou mil coisas, e o alemão cada vez pior, mas acho que deu pra ela acreditar um pouco na história. Pego minhas coisas e desço as escadas. Troco de roupa, o saco nas costas, vou pedalando devagar, paro na esquina, respiro fundo, faz muito frio. Paro num Spätkauf (loja de conveniência), compro uma cerveja e entro no metro. Missão cumprida, os pés doem, a cerveja embriaga mais fácil.
Ceia de natal em casa, depois me encontro com os vários papais noéis de Berlim num bar, só restam alguns, já é tarde, todos bêbados, e assim como eu, cheios de histórias pra contar.
Tudo isso começou em novembro do ano passado, enquanto perambulava pelo Mensa (refeitório) da TU Berlin com dois amigos, uma moça me parou e perguntou o que eu ia fazer no Natal. Falei que não faria nada demais, no máximo uma ceia de Natal com os amigos mais próximos em Berlim mesmo. Então ela me perguntou se eu não gostaria de ser o papai noel. Ela me explicou mais ou menos o que eu teria que fazer e achei que era demais pra mim, ainda mais por conta do idioma. Mas aí ela disse que teria tempo pra praticar, que haveria um treinamento e que eu iria tirar tudo de letra.
Se tirei de letra eu não sei, mas eu encarei o desafio e agora tenho essa história pra contar.